postado em 15/04/2010 07:00
Eles chegaram sem saber o que iriam encontrar. Trouxeram na bagagem as receitas e os temperos de outros estados do Brasil. No meio da construção da capital idealizada por Juscelino Kubitschek, em pouco tempo surgiram os primeiros bares, restaurantes e clubes. Das toneladas de arroz, feijão, carne e farofa que abasteciam os refeitórios dos operários, a cidade viu surgir seus primeiros chefes de cozinha. Uma nova gastronomia era criada da mistura de tantas outras. A partir de hoje, o Correio vai percorrer o caminho da culinária local nesses 50 anos de história para descobrir as raízes, as tradições e o que futuro reserva para a capital federal.
O primeiro bar era chamado de Maracangalha, em homenagem à canção de Dorival Caymmi, que fazia sucesso na época: ;Eu vou pra Maracangalha, eu vou;. O Olga;s Bar, segundo relatos históricos do Arquivo Público do Distrito Federal, era um misto de restaurante e boate, que marcou o início da vida noturna da cidade. ;Era ponto obrigatório de reunião de engenheiros, mestres de obras e candangos;, sinaliza o texto do livro Anuário de Brasília de 1967, que costumava ser publicado pelo governo do Distrito Federal. ;Nesse início, o comércio foi muito forte e, depois da inauguração, algumas lojas acabaram se transferindo para o Plano Piloto;, conta Coutinho.
Barragem
Foi para atender os recém-chegados operários que o mineiro Calixto dos Santos, 84 anos, desembarcou em Brasília, em 1956. Depois de trabalhar em cassinos e balneários chiques no interior de São Paulo, a responsabilidade dele era alimentar aquela gente toda que trabalhava na barragem do Paranoá, quase 2 mil homens. Para completar o serviço, ele instalou uma pequena guarita de madeira perto do muro de proteção do lago artificial para servir lanches e bebidas, para quem tivesse fome e sede. Quando Brasília ainda era um sonho para ser realizado, ele recebia a visita do então presidente Juscelino Kubitschek, que ava toda semana ali para fiscalizar a construção.
Em uma época em que a palavra valia mais do que dinheiro, Calixto conseguiu erguer um restaurante, que, em 1970, se tornou a Churrascaria Paranoá, único estabelecimentos da pré-história de Brasília que funciona até hoje. O frequentador ilustre fez a fama do local e rendeu boas lembranças. A casa simples e de madeira, que fica a 30km do centro da cidade, serviu de refúgio para festas dos políticos. ;Meu pai gosta de contar que fechava a casa para o JK. Ele vinha só com o motorista, nada de segurança, como acontece hoje com as autoridades. Parava o carro lá trás e fazia a festa com os amigos. Ele era muito discreto e, nessas noites, gostava de tocar viola;, relembra o filho de Calixto, Fábio dos Santos, que há quatro anos assumiu o posto do pai.
Quem a pela barragem, não consegue desviar os olhos da casa de madeira, solitária, com a imensidão da água azul e o vale verde ao fundo. Depois de 54 anos e de todo o desenvolvimento, ela continua ali, intacta para o tempo. O forro de madeira de ipê e o chão vermelho de cimento queimado também permanecem. Fábio tem planos de revitalizar o espaço, mas sem deixar os anos de história de lado. ;O intuito não é modernizar, porque espanta a clientela. As pessoas gostam é desse estilo rústico mesmo, da coisa histórica. É um lugar para quem não tem pressa e gosta de ouvir o galo cantar no fim da tarde. A comida é caseira e preparada na hora, mas vale a pena esperar;, diz.
O prato favorito de Juscelino, o cordeiro assado na brasa, continua no cardápio. Além disso, tem picanha ;bem gorda;, buchada de bode e churrasco misto, receitas de Calixto que marcaram a memória de quem frequentava o local. ;Meu pai foi o mestre cuca número 1 de Brasília e, agora, eu tento levar seu legado adiante. Sei que ele sente orgulho disso. Tem gente que, na época, era filho, hoje é pai e continua fiel (à casa);, afirma Fábio. Para quem quer curtir um fim de tarde no lago, a churrascaria também oferece batata frita com queijo, jacaré frito e farofa de ovo caipira, a favorita de um grupo de ciclistas que a por lá todos os feriados. ;Acho que estou dando continuidade à história de Brasília e da minha família;, comenta o empresário.
Luxo na cozinha
Se a culinária brasiliense ganhou força nos refeitórios da construção e no comércio para os candangos, o cenário da alta gastronomia começou no Brasília Palace Hotel, inaugurado em 1958, para receber as autoridades nacionais e JK. ;Era um hotel de bom porte e, durante muito tempo, foi a única opção na cidade para as pessoas da classe alta;, explica o professor Coutinho. O restaurante e o salão com mural de Athos Bulcão serviu de palco para bailes glamorosos e reuniões políticas. Perto da Esplanada dos Ministérios e do Palácio da Alvorada, o local virou ponto de encontro dos chiques e famosos.
No quesito cozinha internacional, a Cidade Livre também não ficava de fora. O restaurante Chez Willy, segundo o anuário, conseguia ;manter o padrão estrangeiro de atendimento e comida;. A Pizzaria do Fiori foi a primeira a servir com exclusividade o tradicional prato italiano. Quanto mais gente aparecia para construir a capital, mais a cidade se enchia de opções, feiras, lanchonetes e cafés. Quatro anos depois da inauguração, em 1964, Brasília tinha 110 restaurantes.
Nessa trajetória gastronômica, um nome tem destaque: Rosental Ramos da Silva, o chef de Juscelino Kubitschek. Mineiro de Muriaé, ele foi descoberto pelo então presidente depois de servir um banquete no Hotel Quitandinha, em Petrópolis (RJ). JK fez o convite: ;Estou fazendo uma cidadezinha aí. Se eu precisar, você vai lá me atender?;. E assim, seu Rosa e a família vieram parar na capital. Ele foi responsável por banquetes de luxo no Palácio da Alvorada e encantou as autoridades do país com pratos tipicamente brasileiros, servidos com requinte.
Depois de servir o governo, o cozinheiro abriu um restaurante na 403 Norte e mais tarde levou o negócio para a Vila Plantalto. O cardápio regional tinha javali à brasiliense, pato no tucupi, coelho ao molho e galinha d;angola ao molho pardo. A casa se tornou tradição em Brasília e até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a primeira dama, Marisa Letícia, aram por lá. O chef morreu vítima de um acidente vascular cerebral (AVC) em 2005, aos 79 anos. A viúva Maria Vera Lúcia Guimarães, 66 anos, tocou o Rosental Restaurante até janeiro deste ano, mas alegou que estava cansada e resolveu fechar as portas, deixando apenas na memória o tempero da cozinha mineira.