Todo dia ela faz tudo sempre igual. Acorda às 4h20 e, do Lago Azul, no Novo Gama, desloca-se para a Asa Sul, onde trabalha como diarista em duas residências. Às vezes três ou quatro, quando consegue algum serviço extra para complementar a renda. Costuma voltar para casa às 21h. Marcilene Soares, 43 anos, é autônoma e, além do trabalho como doméstica, é cuidadora de idosos e manicure aos fins de semana. A profissional faz parte de mais da metade dos trabalhadores domésticos que atuam sem carteira assinada no Distrito Federal.
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O número de profissionais na informalidade é maior do que há 10 anos, quando entrou em vigor a Lei Complementar nº 150, de 2015 — conhecida como Lei das Domésticas —, que regulamentou a profissão e assegurou direitos trabalhistas, como férias, 13º, afastamento remunerado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e aposentadoria.
Na capital, há 30.097 trabalhadores domésticos em contrato de trabalho formalizado, conforme a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Em 2013, dois anos antes de a lei entrar em vigor, eram 42.755 — 42.06% maior do que atualmente. Os dados são do Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF).
Para o economista e sociólogo César Bergo, três fatores podem explicar o crescimento da informalidade após a regulamentação da lei: o aumento de encargos trabalhistas para o empregador, para cumprir deveres legais e benefícios previstos pela CLT, a falta de fiscalização e a "pejotização" do trabalho após a reforma trabalhista que entrou em vigor em 2017. Nessa última modalidade, os profissionais são contratados como Pessoa Jurídica (PJ), perdendo a proteção do contrato de trabalho formal.
"A Lei das Domésticas foi um o significativo para conferir dignidade à profissão. Em função dos direitos trabalhistas, houve o aumento do rendimento mensal. Isso acabou onerando os encargos trabalhistas para quem contrata, então, muitos empregadores optaram por dispensar o trabalhador com carteira assinada, priorizando o serviço das diaristas, que prestam serviços de forma eventual e autônoma, em até dois dias por semana", explica o economista, que é professor de mercado financeiro na Universidade de Brasília (UnB) e conselheiro no Conselho Regional de Economia do DF.
Garantias trabalhistas 5n3w3m
A diarista Marcilene Soares explica que trabalhar de forma autônoma permite ter maior liberdade na hora de escolher qual serviço desempenhar e em qual residência atuar. "É complicado se 'acomodar' trabalhando na mesma casa por muitos anos. Já vi casos em que, mesmo havendo essa 'exclusividade' com o patrão, a doméstica não tem sua carteira assinada, então, recebe menos do que se estivesse exercendo a profissão como autônoma", conta.
Mesmo não trabalhando como CLT, Marcilene contribui para o INSS há 24 anos, visando garantir sua aposentaria e se precavendo de situações nas quais precise se afastar. Bergo alerta haver profissionais que rejeitam o regime de contrato formal na ilusão de ter um rendimento maior. "Esquecem, porém, da segurança que a formalização da atividade pode proporcionar, sobretudo a questão assistencial e previdenciária. No entanto, de forma geral, muitos trabalhadores se prestam a essa situação de informalidade pela necessidade de se manterem ocupados. Nesse caso, eles não têm opção", pondera o professor.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a remuneração dos trabalhadores domésticos com carteira assinada é 50% superior àqueles que não a têm. No quarto trimestre de 2024, os mensalistas receberam, em média, R$ 2039, enquanto os profissionais autônomos tiveram um rendimento de cerca de R$ 1351. Para a doméstica Maria Inez Feitosa, 46, que é CLT há 19 anos, a maior vantagem de ser fichada está nas garantias previstas nas leis trabalhistas.
"É muito valioso ter esses direitos, principalmente férias remuneradas e 13º, pois consigo visitar e ajudar financeiramente minha família, que mora no Maranhão", diz Maria Inez. Outra garantia importante para a doméstica, que trabalha desde os 11 anos, é a aposentaria. "Quando criança, meu pai faleceu e precisei ajudar com as despesas. Então, (os familiares) me mandaram para uma casa de família, onde eu fazia de tudo, mas não recebia salário nem frequentava a escola. Era a primeira a acordar e a última a dormir. Então, poder ter uma vida digna na velhice é uma prioridade", ressalta.
O sofrimento vivenciado pela exploração do trabalho infantil também motivou Maria do Amparo dos Santos, 54, a contribuir para o INSS antes mesmo de se tornar CLT, condição que, para ela, é sinônimo de segurança, principalmente agora, que está afastada por questões de saúde. "Comecei a trabalhar aos 10 anos como babá. Na época, a patroa prometeu à minha mãe que eu teria 'de tudo', mas isso não aconteceu. Em uma ocasião, cheguei a ser agredida por ela", lamenta. A doméstica tem carteira assinada há nove anos. Antes, trabalhava como autônoma de segunda a sábado. "Era muito cansativo. Não teria pique para prestar serviços dessa forma novamente", acrescenta.
Gênero e raça 1o6n3i
Dados do IPEDF também mostram que, em 2024, 95,4% dos trabalhadores domésticos do DF eram mulheres e, em 2023, 79,1% desses profissionais se autodeclararam negros. A diretora do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do DF, Rejiane da Silva Ferreira, destaca que a insuficiência da fiscalização, quanto à formalização das domésticas, está associada a essas condições de gênero e raça. "Se não houver uma atenção maior à classe, de forma que os direitos dessas profissionais sejam garantidos, a tendência é que a informalidade aumente, condição que não é benéfica nem para as trabalhadoras, nem para o Estado", avalia.
Segundo a avaliação de Francisca Lucena, diretora de Estatística e Pesquisa Socioeconômicas (Dieps) do IPEDF, tratam-se de grupos que apresentam baixa escolarização e residem em territórios com maior vulnerabilidade de renda. "Essas condições demandam a ampliação de qualificação profissional, até para que essas pessoas possam diversificar sua área de atuação. Dispositivos, como o Sistema S, o Instituto Federal de Brasília e a Secretaria de Trabalho têm cursos com essa finalidade", comenta.
O economista e sociólogo César Bergo ressalta que aqueles ou aquelas que tiveram suas carteiras assinadas conquistaram melhorias, como maior escolarização e, consequentemente, remunerações maiores. "Sendo autônomo ou microempreendedor individual (MEI), é importante ter consciência de que a contribuição para a previdência social garante uma cobertura para caso fique doente e precise de uma emergência. No caso de uma aposentaria, há também a chance de melhorar de vida e ter uma velhice tranquila", explica.