BEM-ESTAR

Analgésico natural pode ser usado em lugar dos opioides

Desenvolvido em laboratório, o composto está presente na cannabis, mas não causa dependência nem exige aumento frequente da dose. A medicação atua diretamente na dor, sem enviar estímulo para o cérebro

Testado por nove dias em animais, eles reagiram bem e não desenvolveram tolerância   -  (crédito:  Ed Alves/CB/DA.Press)
Testado por nove dias em animais, eles reagiram bem e não desenvolveram tolerância   - (crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)

O tratamento de pacientes com dor crônica ainda é muito dependente do uso de opioides, substâncias que, apesar de eficazes, são viciantes e podem ser fatais quando usadas de forma inadequada. Para melhorar esse cenário, cientistas da Escola de Medicina da Universidade de Washington, em parceria com a Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, desenvolveram um composto que replica uma molécula natural presente na cannabis. Segundo o estudo, publicado ontem na revista Nature, a substância tem propriedades analgésicas semelhantes às da planta, mas sem o risco de dependência ou efeitos neurológicos. 

A pesquisa, liderada pela professora Susruta Majumdar, especialista em anestesiologia na Universidade de Washington, revela um avanço na busca por alternativas aos opioides. "Há uma necessidade urgente de desenvolver tratamentos não viciantes para a dor crônica, e esse tem sido o foco principal do meu laboratório nos últimos 15 anos". Ela detalhou que a molécula se liga aos receptores de dor no corpo, mas, por uma questão de design, não atinge o cérebro. Isso impede os efeitos psicoativos, como alterações de humor, e elimina o risco de vício, já que o composto não atua nos mecanismos de recompensa. 

Segundo Luís Otávio Caboclo, a cannabis medicinal é usada em diferentes tratamentos, principalmente na neurologia e na psiquiatria. "Podemos destacar o uso na epilepsia de difícil controle, na dor crônica, também já é bastante usada. Em outras indicações, como, por exemplo, controle de sintomas em pacientes com demência, principalmente doença de Alzheimer, em alguns casos de Parkinson. Também tem aplicação para crianças dentro do espectro autista. Claro que ainda muito precisa ser estudado para termos melhores evidências para indicar esse tratamento."

Apesar de ser uma opção para alguns pacientes, os efeitos psicoativos, decorrentes das moléculas canabinoides, que se ligam aos receptores CB1 no cérebro e no sistema nervoso periférico, limitam o uso terapêutico. "Os ensaios clínicos também avaliaram se a cannabis proporciona alívio da dor a longo prazo, mas os efeitos colaterais psicoativos têm sido um obstáculo", disse Robert Gereau, coautor do estudo e diretor do WashU Medicine Pain Center.

Testes

A nova publicação revela a criação de uma molécula canabinoide com carga positiva, desenvolvida por Vipin Rangari, um dos colaboradores do estudo. Conforme o trabalho, o design da substância impediu que ela cruzasse a barreira hematoencefálica e atingisse o cérebro, enquanto permitia que ela interagisse com os receptores CB1 presentes em células nervosas fora do cérebro. Os pesquisadores conseguiram reduzir a dor sem causar os efeitos psicoativos.

Testes em camundongos com dor induzida mostraram que ao aplicar o composto, foi possível eliminar a hipersensibilidade ao toque. Os animais não desenvolveram tolerância ao tratamento, mesmo após istração contínua por nove dias. Esse comportamento é impressionante para os cientistas, pois a tolerância é um problema comum em analgésicos como os opioides, que, ao longo do tempo, exigem doses maiores para manter o efeito.

A modelagem computacional realizada pelos pesquisadores da Universidade de Stanford revelou um "bolso oculto" no receptor CB1, que poderia ser utilizado para a ligação da molécula canabinoide. Esse bolso, que se abre rapidamente, permitiu que a molécula se ligasse, minimizando os efeitos relacionados ao desenvolvimento de tolerância. "Projetar moléculas que aliviam a dor com efeitos colaterais mínimos é um grande desafio", destacou Majumdar, que está otimista com os resultados. O próximo o é transformar esse composto em um medicamento oral que possa ser testado em ensaios clínicos. 

Eficiência

Para Daniel Benzecry de Almeida, neurocirurgião e chefe do Grupo de Tratamento da Dor do Hospital INC, embora o tempo de acompanhamento deste estudo tenha sido curto, não precisar ajustar a dose regularmente e manter sua eficiência é muito importante.

"Essa característica é essencial para evitar a escalada de doses, um dos principais problemas associados a analgésicos potentes. Mas apesar das perspectivas promissoras desse novo medicamento, estudos adicionais são necessários para determinar sua real eficácia em humanos e identificar quais tipos de dor poderiam ser tratados com segurança e eficiência."

Segundo Fernanda Herculano, neurologista do Centro Especializado em Neurologia do hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, a maioria dos pacientes com dor crônica ou por diversos tipos de tratamento e sofrem muito com a condição. "Esse composto pode representar uma alternativa viável para essas pessoas que dependem de opioides, especialmente aquelas com problemas de tolerância e dependência. Se os estudos clínicos confirmarem a segurança e eficácia em humanos, o composto poderá ser uma opção menos arriscada. No entanto, a transição entre tratamentos exigirá uma abordagem cuidadosa."

Conforme Cristiane de Almeida Cordeiro, especialista em medicina interna e cuidados paliativos do Hospital Sírio Libanês, o canabinoide avançou muito.

"Hoje há pesquisas sobre seu uso em diversas condições. No entanto, ainda não há um consenso na literatura científica sobre seu papel como tratamento de primeira escolha. Os canabinoides são promissores, mas ainda não têm o mesmo poder analgésico dos opioides. Precisamos de mais pesquisas para desenvolver compostos que possam substituí-los em tratamentos de dor intensa sem comprometer a qualidade de vida."

Problema multifatorial

"Manejar a dor crônica é um desafio clínico para profissionais de saúde, pois afeta todos os componentes biopsicossociais do paciente. Não existe biomarcador ou exame específico capaz de apontar o nível de dor do paciente, até porque essa é uma condição subjetiva e variável. Os principais objetivos no tratamento são fornecer alívio perene, melhorar a funcionalidade e a qualidade de vida, com o mínimo de efeitos colaterais. O tratamento deve apresentar uma boa relação custo-benefício por ser uma condição permanente. O futuro do tratamento da dor crônica depende do avanço da neurociência, do desenvolvimento de biomarcadores, de abordagens personalizadas e da integração de diferentes terapêuticas. Esse fármaco apresentado na pesquisa pode ser uma poderosa ferramenta adjuvante."

Marta Rodrigues de Carvalho, neurologista do hospital Anchieta

Isabella Almeida
postado em 06/03/2025 06:00
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