DESCOBERTA

Saúde bucal está relacionada a doenças crônicas, aponta estudo

Pela primeira vez, um estudo associa o desequilíbrio da microbiota oral a síndromes dolorosas de origem desconhecida, como a fibromialgia e a enxaqueca idiopática. Descoberta pode abrir caminho para novas estratégias terapêuticas

Saúde bucal -  (crédito: Arvind Philomin/Pexels)
Saúde bucal - (crédito: Arvind Philomin/Pexels)

O que acontece na boca não fica só na boca — nos últimos anos, diversos estudos encontraram associações entre a saúde oral e doenças cardiovasculares, metabólicas e até mentais. Agora, pela primeira vez, pesquisadores australianos descobriram uma relação entre o desequilíbrio de microrganismos da cavidade bucal e o risco aumentado de síndromes dolorosas, como fibromialgia e enxaqueca. 

Publicada na revista Frontiers in Pain Research, a pesquisa da Universidade de Sydney identificou microrganismos bucais específicos associados a alguns tipos de dor, sugerindo uma relação entre o microbioma da boca e o sistema nervoso central. A gravidade dos sintomas foi diretamente associada à saúde oral: estatisticamente, quanto mais precária a situação, maior a frequência de enxaquecas e dores crônicas. 

"Esse é o primeiro estudo a investigar a saúde bucal, a microbiota bucal e a dor", disse a principal autora do estudo, Joanna Harnett, professora do Centro Charles Perkins de Pesquisa em Saúde Bucal e Sistêmica. "Nossas descobertas são particularmente importantes para a fibromialgia, que, apesar de ser uma condição reumatológica comum, é frequentemente subdiagnosticada", complementou Sharon Erdrich, coautora e doutoranda da Faculdade de Medicina e Saúde. Sessenta e sete por cento das participantes sofriam de dor no corpo todo, sem nenhum mecanismo específico associado à sensação. 

Genômica

As pesquisadoras investigaram a saúde bucal das participantes, além de aplicar um questionário da Organização Mundial da Saúde (OMS) para avaliar a dor. Elas também coletaram amostras de saliva e fizeram análises das bactérias identificadas com uma tecnologia genômica avançada. Então, compararam os resultados, com objetivo de verificar se havia uma correlação entre o estado da cavidade oral, os microrganismos encontrados e as síndromes dolorosas. 

Segundo as autoras, os resultados destacam a importância de uma boa saúde bucal para potencialmente melhorar o bem-estar geral. Para elas, o artigo estimula o aprofundamento do estudo sobre o papel da microbiota bucal em condições de dor crônica sem causa aparente. 

As participantes com pior saúde bucal apresentaram maior probabilidade de atingir escores mais altos de dor (escala científica utilizada para verificação da sensibilidade): 60% tinham mais chances de sentir dores corporais moderadas a intensas, e 49% maior probabilidade de sofrer enxaquecas. "Uma saúde bucal mais precária foi um preditor estatisticamente significativo de enxaquecas frequentes e crônicas", disse Erdrich. 

Fator de risco

Na pesquisa, a abundância das bactérias Lancefieldella (gênero) e Mycoplasma salivarius foi significativamente associada  à enxaqueca. "Pessoas que sofrem de enxaqueca já têm um organismo mais sensível a estímulos. Quando há, também, um quadro de dor crônica ou fibromialgia, essa sensibilidade aumenta ainda mais. Nesse cenário, a presença de inflamação vinda da cavidade oral pode funcionar como mais um fator de risco, contribuindo para o aumento da frequência das crises de enxaqueca", afirma Simone Carrara, cirurgiã-dentista especialista em disfunção temporomandibular (DTM) e Dor Orofacial. 

Para Carrara, se a relação entre a disbiose oral e a frequência das crises de enxaqueca for confirmada por novos estudos, isso reforça ainda mais a importância da atuação do cirurgião-dentista em equipes multidisciplinares voltadas ao controle da dor crônica e das cefaleias. "Com a possível influência do desequilíbrio da microbiota oral sobre o sistema nervoso central, a odontologia a a assumir também um papel estratégico na prevenção e no acompanhamento de distúrbios sistêmicos", acredita. 

Desequilíbrio 

O estudo australiano é observacional, ou seja, não investigou a relação de causa e efeito. Porém, especialistas sugerem que inflamações e desequilíbrio de bactérias poderiam estar por trás da associação encontrada. "Pacientes com inflamações bucais liberam mediadores inflamatórios que entram em circulação no corpo, chegam ao sistema nervoso central e potencializam a dor", explica a dentista Giovanna Zanini, de Brasília. "Quando a microbiota está alterada, isso também influencia na inflamação sistêmica e na própria percepção que o paciente tem da dor."

Especialista em periodontia e doutoranda em odontologia na Universidade de Brasília (UnB), Elisa Grillo Araújo lembra que o microbioma bucal é o segundo maior do corpo, atrás apenas do intestinal. "Mas ainda é muitíssimo pouco explorado. Ainda estamos engatinhando no conhecimento sobre o que esses microrganismos podem fazer por nós e também contra nós."

Para a dentista, o estudo australiano reforça o entendimento do corpo como um sistema integrado. "Não há como negar a importância da saúde bucal para todo o organismo. Cuidar da boca pode complementar o manejo da dor; talvez, a escova de dente seja uma ferramenta muito mais poderosa do que a gente imagina."

 


Três perguntas para Elaine Maria Guará Lôbo Dantas, professora do curso de Odontologia da Universidade Católica de Brasília (UCB)

Quais mecanismos poderiam estar por trás da associação entre saúde bucal e dor crônica? 

Os mecanismos propostos incluem a migração bacteriana. No estudo, foram encontradas bactérias orais, como o micoplasma salivário, e seus subprodutos, como o LPS, um potente indutor de citocinas pró-inflamatórias. Elas são associadas a condições dolorosas, como a síndrome da dor regional complexa e a fibromialgia. Essas bactérias podem migrar para a corrente sanguínea, em razão de, por exemplo, falha da barreira da mucosa oral. A falha pode desencadear respostas imunológicas contra proteínas bacterianas e humanas. Além disso, há o mecanismo da inflamação sistêmica — substâncias associadas à dor podem ser estimuladas por componentes bacterianos, exacerbando a sensibilização central. Por fim, temos o desequilíbrio microbiano. Uma microbiota oral prejudicial pode liberar metabólitos que afetam as vias neurais e imunológicas, amplificando essa dor. 

Além da fibromialgia, há doenças reumáticas associadas à saúde bucal descuidada?

Sim. Além da fibromialgia, outras condições reumáticas e musculoesqueléticas têm conexões com a saúde bucal. Por exemplo: a DTM, que é a disfunção temporomandibular. O estudo destaca a comorbidade com fibromialgia e a presença do micoplasma salivário. Essa bactéria foi encontrada no líquido sinovial da articulação temporomandibular. Além disso, doenças periodontais podem desencadear respostas autoimunes contra proteínas humanas e bacterianas, agravando a artrite reumatoide. Essas associações reforçam que a inflamação bucal pode impactar doenças reumáticas via mecanismos imunológicos e microbianos. 

O estudo traz alguma implicação clínica?

Ele traz, sim, com destaque principalmente para o dia a dia das pessoas. A mensagem é bem clara: práticas de higiene bucal e cuidado com a boca podem ter um impacto positivo na sua saúde geral e até mesmo na forma como você pode experimentar a dor crônica. Os leitores podem cuidar com muita atenção da higiene bucal. A escovação completa e o uso diário do fio dental são essenciais para controlar o biofilme bacteriano e manter a microbiota em equilíbrio. Além disso, visitar o dentista regularmente, fazer check-ups e limpezas profissionais são fundamentais para detectar e tratar problemas como cáries, gengivites e periodontites, antes que se tornem mais graves. (PO)

Eixo boca-cérebro

Está bem estabelecido que as bactérias patogênicas da cavidade bucal, especialmente as gram-negativas, liberam moléculas que ativam a resposta imune e aumentam níveis de citocinas inflamatórias. E isso contribui para o aumento da inflamação sistêmica e também a neuroinflamação, que está envolvida na dor crônica. O que mais chama atenção nesse trabalho é que ele sugere que a disbiose bucal pode contribuir para a sensibilização central, alterando a forma como o cérebro percebe estímulos e levando à dor nociplástica, que é uma amplificação da dor. O artigo traz o conceito eixo boca-cérebro que vem sendo bastante discutido em relação às doenças neurodegenerativas como Alzheimer e demência, mas,  agora, o foco é outro: é a relação entre a microbiota oral e as dores nociplásticas,  aquelas que surgem devido a alterações no sistema nervoso central, sem lesões nos nervos. Além disso, a disbiose pode afetar o equilíbrio dos neurotransmissores glutamato e GABA, que também estão relacionados à dor. 

Elisa Grillo, especialista em periodontia, mestre em Odontologia, pesquisadora
e doutoranda na
Universidade de Brasília

postado em 01/06/2025 06:00
x