Cinema

Uma sintonia capital: cinema, Brasília e Walter Lima Jr.

Um dos grandes diretores de cinema no país, Walter Lima Jr. se reconecta com a capital, que viu nascer, e com o eterno desenvolvimento previsto para o Brasil

Walter Lima Jr., em agem recente por Brasília -  (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Walter Lima Jr., em agem recente por Brasília - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Aos 86 anos, Walter Lima Jr., que coleciona sucessos no cinema como Menino de engenho e A ostra e o vento, e feitos como a descoberta de Fernanda Torres para o cinema, ou por Brasília, como o grande homenageado da mostra 6º FIC Fantástico (no CCBB). Pensador do folclore nacional, vertido em obras audiovisuais que tocam figuras como Chico Rei, Câmara Cascudo, José Lins do Rego e Assis Chateaubriand, Walter viu exibido, pela primeira vez, na capital, o longa Brasil ano 2000, censurado em fins dos anos de 1960, tempo das lutas ao lado de parceiros como Glauber Rocha e Cacá Diegues.

"No filme, fala-se não apenas do esforço de chegar ao progresso, mas se trata de identidade. Há uma longa cena em que, se pintando, os personagens ressaltam: 'Eu não sou índio, eu não sou índio — sou civilizado'", relembra. Autor, em cinema, de Inocência (1983), que revelou Fernanda Torres, o diretor destaca o âmago da obra literária de Visconde de Taunay, que tangencia a condição feminina. "O livro é sobre um cientista alemão que caminha pelo Brasil e pretende conhecer os hábitos e costumes dos brasileiros. Paralelamente a isso, há a história de uma menina prisioneira de uma de uma situação social", avalia. O conteúdo chamou a atenção de figuras vitais ao cinema, entre os quais Humberto Mauro, Carmem Santos, Luís de Barros e Lima Barreto.

Numa carreira nunca atrelada à política ou partido, Walter Lima acalenta ainda seus projetos: "Há filmes que ficam na nossa cabeça, numa filmografia latente". E o que teria dentro da cabeça, então? "Miolo, miolo", diz, às gargalhadas. Inspirado, com a visita à capital, que conheceu embrionária, o cineasta conversou, com humor elevado, com o Correio. Entre muitas memórias, algumas dolorosas, entrega que, sim, embarcou na terapia. "Eu fiz (terapia), claro. No meio desta loucura toda, você acha que eu vou ficar parado, esperando um milagre!? Você tem que sair para a luta. Em que resultou?! Nisso que você está vendo (risos). Trabalho é terapia. Você está querendo falar com alguém... Faço cinema por querer falar para as pessoas. Não faço cinema para mim. Faço para mim, no sentido de que me incluo (no público). Faço cinema para os outros", define. 

 

Entrevista // Walter Lima Jr., cineasta

 

Estar em Brasília te rendeu que experiências? Aqui, chegou a lidar com a censura, não?

Você entra numa órbita: Brasília, para mim, tem o significado de uma excursão. É uma referência histórica na minha cabeça. Minha geração teve a noção de Brasília como um salto para além. Eu conheci a capital numa excursão da faculdade de direito. O governo disponibilizava um avião da FAB e trazia estudantes para conhecer Brasília. A cidade estava em obras: chegávamos de manhã e partíamos à noite. Daí a visão que se operava uma transformação. Para mim. Quanto à censura, sim — Brasil ano 2000 foi um filme silenciado. Uma semana antes do AI-5, ele ou na censura. Em Berlim, foi premiado. Esteve em Porto Alegre e São Paulo. Mas, ali, na efervescência do que acontecia, tropicalismo e tudo mais, o filme foi alvo de manifestações. Foi apedrejado o Cinema Coral, exibidor carioca, as pessoas romperam o cartaz do filme. Fizeram manifestações. E ele vinha com a música do Gilberto Gil. Havia uma estranheza no Brasil, e no meio da ditadura, debaixo do AI-5, foi pedido o filme de volta para Brasília. Ele teria 10 cópias do lançamento. Daí, na censura, teve 15 cortes não contínuos, e, assim, o filme dava pulos. O som ia 24 quadros na frente de cada corte de imagem. Perdia o sentido, e, todo cortado, ia sendo devolvido. Na primeira semana de exibição no Rio, o filme foi anulado. Acabou. Foi vendido apenas para fora.

O senhor ganhou o Urso de Prata, no Festival de Berlim, com ele...

Esse filme tem uma antena muito ligada — ele propõe o espírito dos acontecimentos mais adiante. Só que não acontece. Se efetiva um filme sobre um lugar que chama Me Esqueci. A gente convive no Brasil com essa perda. Uma amnésia, a toda hora. Alguém esqueceu que houve ditadura, e alguém é a massa... Brasília é a lembrança de um futuro. A gente pretende chegar nesse futuro. A gente teve uma vontade danada de chegar, quando Brasília foi construída. Saíamos da Segunda Guerra, o Brasil começou a se industrializar e surge a hipótese da marcha para o Oeste. De descobrir, de integrar. Brasília não vem como a sede do governo: é um sonho inteiro. O mais interessante de Brasília são as pessoas, que são a carne viva. Os prédios, as coisas, são os monumentos. É o cenário. Mas a gente convive com a negação disso (na ótica de alguns).

O que o Vladimir Carvalho representou para os documentários?

Eu convivi com Vladimir, quando fui fazer Menino de engenho (1965), na Paraíba. Havia ele, o Linduarte Noronha, o Paulo Melo. Vladimir tinha feito Os romeiros da Guia (feito com João Ramiro Mello). Um filme interessante, numa escola documental que estava se revelando, algo menos oficial do que a da Instituto Nacional Educativo. Tentativa de se chegar ao temário da industrialização e das diferenças de classes. Vladimir registrava uma cultura: fazia um filme sobre o romeiros, ainda não era um cinema de discussão como viria a ser, com o Eduardo Coutinho, mas tinha uma pureza. Assim uma busca, uma coisa meio mauriana (ligada a Humberto Mauro). Vladimir era um cara muito antenado com a realidade brasileira. Para ele, não bastava aquilo, e ele veio para o centro da transformação. Veio, e se dedicou. Ele virou um brasiliano. Ficou com uma visão mais coletiva do país. Quando eu vejo Brasília, me fascina a cidade com coisas lindas e que tem coisas brutas e feias. Mas tem uma coisa que é tão real: o nativo. O brasiliano figura humana.

Faltam pessoas como o Chatô? Como seria o país com mais deles?

Chatô antecipou a modernidade. Era um cara inquieto, não sossegava. Chatô se adiantou, uma vez que a classe dominante não tomava nenhuma providência. Aí, ele tomou decisões pela classe dominante. Da maneira dele, que talvez fosse a única maneira. O folclore que ficou foi de que pegava dinheiro dos milionários de São Paulo para investir. E digo, não era exatamente assim... Ele disciplinou aquele orçamento de São Paulo, numa coisa útil para a sociedade brasileira. Foi isso que ele fez. Ele é um personagem único. Acho Chatô extraordinário.

Como percebe o fenômeno mundial Fernanda Torres?

Inocência (1983) foi o primeiro filme dela. Pedro Farkas (fotógrafo ainda de Marvada carne) a levou, dizendo o quanto era maravilhosa. No Ainda estou aqui, encontrei uma atriz madura como era de se esperar, pelo berço dela. Fernanda é uma pessoa extremamente inteligente e muito bem humorada. Ela transforma o ambiente em que está, de modo radical. Ela desconcerta as pessoas. Nas entrevistas nos EUA, a achei magistral, entrava, e o entrevistador ficava a reboque dela. A primeira vez que vi Fernanda foi de forma tão fortuita. Eu não consegui tirá-la da cabeça. ando no largo do Boticário, vi o Cláudio Marzo num jipe; parei para cumprimentar, botei a cara para dentro, e esbarrei nela. Fernanda ainda não tinha 16 anos. Era aquela pessoa assim meio escondida. Mas, ao mesmo tempo, um olhar muito vivo. Não falou nada. Saí dali e disse: ela é a Inocência.

Como ficou tua relação com a família de Glauber Rocha? Junto a ele, superou estranhamentos?

A família é a Paloma e a Ava e os filhos do Glauber. Não existe a mãe (Dona Lúcia), e não existe nada mais. E um determinado momento da minha vida, eu era totalmente ligado, era casado com a Anecy e vivia dentro da família. Depois da morte da Anecy, houve um distanciamento total. Eu não me vi confortável de ficar, numa situação em que o Glauber estava totalmente pirado. Ele pirou com a morte da irmã. E ele me acusava... O que ficou daquela relação foi o que já havia, até aquele momento. O Glauber é uma pessoa inquestionável, que muito me ajudou e a quem ajudei. Tivemos uma proximidade de cumplicidade. Quem levou Villa-Lobos para Deus e o diabo na terra do sol (1964) fui eu. Ele queria Brahms. Quando li o roteiro, indo para Salvador, fiquei chocado. Disse: "Glauber colocar Brahms no meio desta caatinga aqui?! O que tem a ver..." Ele não conhecia Villa-Lobos, que era editado aqui, não se tocava. O acervo musical dele foi montado na França. Com Paulo Gil Soares, eu fui até a Aliança sa, em Salvador e roubei aqueles discos, e dei para o Glauber ouvir.

Alguma coisa por realizar ainda para tua percepção?

Você não consegue parar no cinema. É como você vê as coisas; sabe, você viver o cinema... Perceber as coisas por meio da linguagem do cinema te deixa dentro de um filme o tempo inteiro. Você com você mesmo e o cinema. Eu continuamente estou fazendo filme, na minha vida. Como é muito difícil fazer, porque cinema no Brasil, de vez em quando, morre... e depois ele renasce. Em determinado momento, ele morreu: o Collor acabou com a Embrafilme, matou; depois, o Bolsonaro não foi atrás da Ancine. Não ficou destruindo aquilo?! Botando na cabeça das pessoas que Lei Rouanet é uma forma de roubar o Brasil? Um absurdo completo. É o que as pessoas pensam, dizem na televisão...

Como crê ter construído tua carreira?

Com filmes, você tem projetos e tem oportunidades. Na falta de continuidade do trabalho em cinema, fui fazer a construção do Globo Repórter. O significado, para mim, não era trabalhar para a Globo; era para fazer um filme, cada hora. Fiz oitenta e tantos, em oito anos. Todo mês, era obrigado a fazer um filme, e era tudo 16mm. Uma coisa muito rica. Com cinema, você carrega um fardo. Aquilo pesa para o resto da vida. O Glauber carregava Deus e o diabo, Terra em transe, e não fazia cinema sempre. Eu percebi que queria fazer sempre. Isso me deu uma certa leveza em relação ao que eu queria. Na tevê se podia errar. Existia a filosofia de que, se você acerta uma coisa, é festejado, e dois dias depois, ninguém nem se lembra do que fez. Com o erro, era o mesmo (risos).

Do que o cinema brasileiro se serviu?

Nós bebemos muito do cinema americano e italiano. (Walter Hugo) Khouri bebeu de ses, suecos. Mas o cinema todo é uma orgia. Todos bebem de tudo. Akira Kurosawa seria Kurosawa, sem o cinema americano?! Ele poderia ser outra figura. (Kenji) Mizogushi ele não seria... Kurosawa é um cineasta que conta história e vai direto ao público. Se a gente fosse traduzir o cinema americano como industrial que se dirige diretamente o público. Kurosawa aprendeu essa lição. Pelo menos, ele itiu isso para ele, e não deixou de ser japonês. Então, o cinema inteiro conversa entre si, numa linguagem universal. O que a gente pretendeu no cinema novo foi criar uma originalidade do cinema espontâneo (a câmera na mão...), fora da linguagem que fosse compreensiva até para o nosso público. O público não acompanhava aquela linguagem. Para citar o Glauber, os filmes não chegam no público. Os filmes adoram a sua própria imagem. São filmes vaidosos deles mesmos. Ficam lá. Uma certa dose de humildade teria feito do Cinema Novo um outro cinema. Nós somos apenas um prolongamento de uma coisa que vinha sendo feita entendeu, sempre na porrada.

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Qual o teu grande filme? A ostra e o vento (exibido no Festival de Veneza)?

Muita gente dentro o reconhece como meu melhor. Eu não acho. Acho que o filme que em que eu me sinto mais próximo da minha vivência e da minha compreensão do Brasil, a essa idade, foi Os desafinados (2008) — ele se refere a minha geração. Não fiz um filme sobre bossa nova. Fiz um filme sobre o fracasso. Sobre os caras que tentam e não conseguem (risos). Num diálogo, no exterior, se pergunta a uma personagem o que é o Brasil? Ela fica sem saber, e diz: "O Brasil é Carinhoso, é Pixinguinha, é Brasília"; começa a falar do sonho brasileiro, condizente com a época. Eu quando cheguei de volta, na faculdade, depois de ar por Brasília, estava certo de que tinha visto um milagre. Uma capital inteira sendo construída?! Calcula! É um Brasil que tava nascendo dentro de cada um. Pensávamos: "Deixou de ser o país do futuro — é agora.

 

postado em 07/04/2025 10:48 / atualizado em 07/04/2025 11:06
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