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O 'choque liberal' por trás da crise de desigualdade em Cuba: 'Vida só melhora para quem tem dólar'

Semelhante à crise na Rússia pós-União Soviética, estratégia cubana tem contribuído para maior crise da história do país, com inflação acelerada, escassez e desigualdade crescente.

Cubanos enfrentam filas para comprar produtos básicos em mercado estatal  -  (crédito: Vinicius Pereira / BBC News Brasil)
Cubanos enfrentam filas para comprar produtos básicos em mercado estatal - (crédito: Vinicius Pereira / BBC News Brasil)

Marina Clary e Claudia Marcelina são vizinhas no bairro de Havana Vieja, o centro histórico da capital de Cuba, mas am de formas distintas pela crise econômica que atinge o país.

Marina recebe estrangeiros que se hospedam na sua residência e possui ainda uma venda na janela com vista para a rua.

"Claro que vejo a crise econômica, mas, de uns meses para cá, a vida não está tão ruim. Compro as coisas em outras lojas privadas e, assim, consigo ter o a produtos que o Estado não consegue mais nos oferecer", conta.

Já Claudia, que mora na parte de trás da casa, não consegue ter o à rua ou ao dólar dos estrangeiros. Assim, depende unicamente do emprego de arquiteta no governo. Para ela, a situação no país é a mais grave que se recorda.

"Não me lembro de uma situação tão precária. Os preços sobem rapidamente, faltam produtos básicos para a maioria, exceto para quem tem o ao dólar e pode comprar", diz.

O que as cubanas am no momento remete aos tempos da chamada "terapia do choque", segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

Esse foi o nome dado ao conjunto de reformas econômicas radicais implementadas na Rússia, logo após o colapso da União Soviética, em 1991, que buscava uma transição rápida do socialismo para uma economia de mercado.

Mas esse processo culminou em problemas sociais, como a hiperinflação e desigualdade extrema, que, ao fim, ajudaram a consolidar Vladimir Putin no poder.

Cuba, o único país comunista das Américas, embora em um contexto histórico e geopolítico diferente, vive hoje um processo que guarda semelhanças com o período da história russa.

A crise econômica agravada pela pandemia, pelo endurecimento do embargo dos EUA e pela queda dos apoios externos forçou o governo cubano a adotar medidas impensáveis há alguns anos: legalização parcial do dólar, estímulo ao setor privado, maior abertura a investimentos estrangeiros e fim de subsídios estatais em setores estratégicos.

Ou seja, uma terapia do choque caribenha.

A estratégia, porém, tem contribuído para a maior crise da história do país: uma inflação acelerada, escassez e desigualdade crescente — características que lembram o impacto social vivido pela Rússia.

Cubanos enfrentam filas para comprar produtos básicos em mercado estatal / Vinicius Pereira
Vinicius Pereira / BBC News Brasil
Cubanos enfrentam filas para comprar produtos básicos em mercado estatal

Na Rússia, pobreza e Putin

A transição de uma economia planificada para a de mercado causou traumas profundos na sociedade russa entre 1991 e 2000.

A terapia do choque deixou de lado a intervenção direta do Estado, caminhando à total liberalização de preços, a abertura ao comércio internacional e a privatização em massa de empresas estatais.

"A lógica econômica era que tal transição seria dolorosa. Assim, é melhor ter toda a dor 'de uma vez' ao invés de ficar com um longo processo doloroso que poderia esmorecer expectativas com o tempo", diz Angelo Segrillo, professor de História da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Rússia.

Esse processo sangrou a economia russa durante quase uma década. Apenas em 1992, no início da terapia, a desvalorização cambial nominal foi de 5.695%, o que fez com que a inflação do ano fosse de 1.490%, segundo dados de um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Logo, esse problema se tornaria crônico, com o país se desindustrializando e a economia definhando durante anos.

Segundo Segrillo, a queda do Produto Interno Bruto (PIB) da Rússia na década de 1990 foi maior que a queda do PIB dos EUA na década da Grande Depressão nos anos 1930, com quase todos os anos com crescimento negativo na economia.

Esse colapso econômico também causou empobrecimento da população, concentração extrema de riquezas e o surgimento de oligarquias poderosas — que ajudariam a consolidar o nome de Putin entre os russos, fazendo com que o governante se tornasse popular ao estabilizar a crise no início dos anos 2000.

"Putin não é associado, no imaginário da população, às privatizações. Ao contrário, ele reestatizou algumas empresas estratégicas", afirma Segrillo.

"Isso, junto com o fato de que ele chegou ao poder depois do 'fundo do poço' da crise financeira de agosto de 1998 e, assim, sua primeira década na presidência foi marcada por alto crescimento econômico, fez com que Putin seja associado à melhora econômica na cabeça da maioria dos russos, enquanto [Boris] Yeltsin é muito associado à piora econômica dos anos 1990", afirma Segrillo.

Um supermercado privado em Havana, Cuba
Vinicius Pereira / BBC News Brasil
Um supermercado privado em Havana, Cuba

Crise sem fim

Assim como a Rússia da década de 1990, Cuba também a por problemas econômicos graves. A economia cubana encolheu 12% desde 2019, como consequência da pandemia de covid-19, do bloqueio alimentado pelos EUA e de planos macroeconômicos ineficientes.

Apenas o bloqueio econômico dos EUA, condenado pela maioria dos países na Organização das Nações Unidas (ONU), já gerou um prejuízo de cerca de US$ 164 bilhões, segundo o governo cubano.

Agora, com a volta de Donald Trump à Presidência, os EUA recolocaram Cuba na lista de países patrocinadores do terrorismo — o que amplia as sanções econômicas sobre a ilha.

Além disso, antigos parceiros comerciais e ideológicos, como a Venezuela, já não estão em condições de auxiliar o país.

E, desde a pandemia de covid-19, o setor de turismo, essencial para a entrada de divisas no país, não se recuperou.

O número de estrangeiros na ilha caiu de cerca de 4 milhões em 2019 para 2 milhões em 2024, segundo dados do governo, o que aprofundou o déficit fiscal, que já é rotineiro, para cerca de 11% ao ano.

Para tentar driblar a falta de dólares na economia, o governo anunciou profundas mudanças macroeconômicas, que buscam dar um choque liberalizante em alguns setores, mas que já afetam o dia a dia da população local.

O primeiro o foi a implementação de um novo regime cambial, que unificaria as duas moedas que circulavam na ilha, e, depois, daria maior flexibilidade ao dólar, em substituição ao regime de câmbio fixo.

Aline Marcondes Miglioli, doutora em Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Campinas (Unicamp) e coautora do livro Entre a utopia e o cansaço – pensar Cuba na atualidade, explica que isso acaba desorganizando todo o sistema de preços.

"Imagina que você tem os preços todos em uma determinada escala, e, de repente, precisa restabelecer uma nova taxa de câmbio, dado que cada moeda tinha uma certa conversão ao dólar", diz Miglioli.

"Quando você muda essa correlação de preços em uma economia tão dependente do setor externo, é muito complicado."

Segundo Miglioli, com baixa capacidade de produção de alimentos e bens de consumo, essa vulnerabilidade de Cuba se reflete em toda a dinâmica econômica, acentuando os efeitos da crise sobre a estrutura produtiva e social.

"Se eu não tenho divisas, eu também não vou ter capacidade, por exemplo, de fazer obras públicas. Os apagões são um pouco essa dificuldade de lidar com estrutura de geração de energia num contexto de baixa atividade econômica", conclui Miglioli.

Além do câmbio, o governo também estimulou o setor privado na ilha, dando uma maior abertura a investimentos estrangeiros e o fim de subsídios estatais em setores estratégicos, como o aumento do preço dos combustíveis, já pagos em dólar, da eletricidade e da água.

Pequena venda na porta de casa em Havana, Cuba
Vinicius Pereira / BBC News Brasil
Pequena venda na porta de casa em Havana, Cuba

Terapia do choque caribenha

O problema é que, assim como na terapia do choque na Rússia, as medidas liberalizantes estão causando mudanças sociais profundas, incluindo alguns problemas, como a desigualdade, que contraria a marca deixada pelos governos dos irmãos Fidel e Raúl Castro.

Enquanto US$ 1 vale até 120 pesos cubanos, na taxa oficial, no paralelo o valor já chega a 360 pesos.

Assim, os cubanos que têm o ao dólar por meio do turismo ou dos comércios particulares conseguem uma vantagem sobre os que não possuem.

"Aqueles que melhoraram são aqueles que têm o à moeda estrangeira, remessas, ou que possuem um estabelecimento e podem ir ao mercado informal de câmbio para comprar dólares", diz Omar Everleny Pérez Villanueva, doutor em Economia e ex-diretor do Centro de Estudos Econômicos Cubanos da Universidade de Havana.

"Sempre vai ter uma camada que não participa desse circuito. É aí que o Estado precisa tomar medidas mais direcionadas."

A inflação oficial chegou a mais de 30% no ano ado, o que pode indicar uma elevação de preços muito maior no mercado informal, castigando aqueles que recebem do governo, como os aposentados.

"O Estado já poderia duplicar ou triplicar a pensão média neste país, porque a situação é realmente deplorável. A aposentadoria média neste país ainda é 1.528 pesos cubanos (R$ 360 ao câmbio de 23/05), que não resolve a alta inflação que tivemos desde 2021", diz Villanueva.

Portanto, enquanto o salário mínimo mensal de alguns vale cerca de US$ 4 (R$ 22,50), outros recebem isso em apenas uma transação cotidiana.

"O meu salário aqui é pouco. Não consigo comprar nada em um supermercado privado e, nos públicos, amos por privações. Às vezes, não há produtos suficientes. Além disso, não posso fazer consultas privadas, portanto, dependo 100% do salário que o governo me paga. Se isso perde valor rápido, não tenho outra saída, enquanto quem trabalha com turismo ou recebe remessas, consegue driblar isso", ite Juan Carlos Grase, médico responsável por um conjunto habitacional em Santa Clara, no interior do país.

De acordo com o ministério da Economia e Planificação de Cuba, o país toma medidas para conter tais distorções macroeconômicas. Entre os objetivos prioritários para 2025, segundo o órgão, estão a implementação de reformas no mercado cambial, a consolidação do o bancário e o aumento das receitas externas através da diversificação — a modo de reduzir os déficits e a discrepância entre o mercado paralelo e oficial do dólar.

Além disso, o presidente Miguel Díaz-Canel Bermúdez pediu que executivos e especialistas avaliem estratégias para recuperar os fluxos de remessas, importante pilar da economia cubana, e avançar nas políticas monetária e fiscal e mitigar seu impacto social.

Para Villanueva, uma das saídas de Cuba é ampliar o espaço do mercado na economia, inspirando-se — ainda que de forma adaptada — em diretrizes implementadas em economias que avançaram e que fugiram da terapia do choque, como China e Vietnã.

Para ele, sem avanços em direção a um modelo de socialismo de mercado, Cuba terá enormes dificuldades para superar a atual crise.

"E não vejo medidas indo nessa direção. E o exemplo disso é que o país está numa situação de descontrole, com desabastecimento em todos os setores da economia nacional", completa.

Além disso, há também o desafio político.

"ar ou não por essa fase depende muito da política e de como esses interesses vão ser conciliados dentro do Partido Comunista, além da força que [o presidente] Miguel Díaz-Canel vai ter para enfrentar com coesão, sobre como ele vai lidar com essa desigualdade", avalia Aline Miglioli, da Unicamp.

"Eu acho que é um desafio enorme pela frente, que é ar por uma crise econômica sem Fidel Castro, sem ter ao seu dispor essa figura carismática, mas também a inspiração de construir algo novo", conclui.

BBC
Vinicius Pereira - De Havana (Cuba) para a BBC News Brasil
postado em 24/05/2025 06:38
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