
JORGE SANTANA, professor doutor de história do Instituto Federal Paraná (IFPR)
A quaresmeira é uma espécie de planta nativa do Brasil que gera uma flor linda, de tom violeta com o centro amarelo e tem como principal característica florir durante a quaresma, período de 40 dias que antecede a Paixão de Cristo. Esse é o evento em que Jesus Cristo foi crucificado e assassinado há cerca de 2 mil anos. Contudo, outra flor também nasce na quaresma e é responsável por florir conhecimento, sabedoria e combater a ignorância durante o ano inteiro.
O carnaval é o período final antes do início da quaresma, quando começa uma temporada de resguardo, reflexão e contenção dos desejos da carne para os cristãos. O carnaval, ou a festa da carne, há séculos é tido por muitos incautos como profano, atrasado, promíscuo e destituído de qualquer qualidade ou valor cultural. Nos últimos anos, no Brasil, avaliações negativas ganharam espaço na mídia, nos parlamentos e, principalmente, nos púlpitos. Segundo os detratores, nada de bom pode vir dessa festa de origem europeia, mas que aqui em nossas terras foi ressignificada pelas tradições e contribuições africanas.
No entanto, os desfiles das escolas de samba têm cumprido um papel importante, num processo que dura meses, de aprendizagem de fatos históricos, personagens, livros e culturas desconhecidos do grande público. No carnaval de 2024, duas escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro tiveram seus enredos baseados em obras literárias. Uma delas, a Portela, trouxe para a Sapucaí Um defeito de cor, da escritora Ana Maria Gonçalves, um romance sobre uma africana idosa que retorna ao Brasil em busca do seu filho, ando por temas como escravidão e violência. Após os desfiles, a obra literária bateu recorde de vendas on-line, pois a festa momesca produz efeitos positivos, além de incentivar a leitura.
Em 2025, ao menos duas escolas trouxeram para a avenida enredos com temas de pouco conhecimento da população e, até mesmo, de especialistas em história, como o que vos escreve. A Unidos do Tuiuti teve como eixo central a história da primeira travesti brasileira, Xica Manicongo, mulher trans escravizada, nascida no Congo, traficada para o Brasil no século 16. Mesmo em situação de cativa, Xica continuou usando roupas femininas, rejeitou seu nome masculino atribuído pelos escravizadores e não abriu mão de sua identidade de gênero feminina. Mas, ela acabou sendo perseguida pela Santa Inquisição, sendo obrigada a vestir-se como homem para evitar ser queimada na fogueira.
O lindo desfile da Tuiuti trouxe uma comissão de frente composta por mulheres trans e diversas alas denunciando a transfobia, inclusive, a ala Operação Tarântula, esse evento desconhecido para mim e que me colocou para pesquisar. Descobri que foi uma operação da Polícia Civil de São Paulo em 1987 que tinha como desculpa "combater a epidemia de HIV", mas, na prática, era uma ação higienista e transfóbica para remover arbitrariamente mulheres trans das ruas da capital paulista. As detidas tinham seus cabelos cortados e eram obrigadas a usar roupas masculinas. Na prática, uma tentativa de adequar essas mulheres à normatividade de gênero que as autoridades desejavam.
Já a escola Unidos da Viradouro, de Niterói, apresentou na avenida o samba-enredo sobre João Batista, apelidado de Malunguinho, que foi líder no quilombo do Catucá e lutou pela liberdade dos escravizados em Pernambuco. Contudo, o Malunguinho também é uma entidade religiosa, de origem afro-indígena, cultuado na jurema sagrada e no catimbó, considerada mensageira dos três mundos por ser manifestar em três formas: exu (mensageiro), mestre (guia e protetor dos iniciados no culto) e caboclo ( um ser que teve existência real). Malunguinho morreu em combate na luta por liberdade, mas permanece vivo nos cultos religiosos afro-indígenas.
Histórias, personagens e eventos históricos pouco abordados, ou que não estão nos livros didáticos, continuam a ser resgatados pelas escolas de samba. Nesse sentido, esses relegados ao esquecimento são lembrados, celebrados e ensinados na Sapucaí. O carnaval, tão apedrejado por alguns como uma festa promíscua e desprovida de qualidade, mostra justamente o contrário. Assim como a quaresmeira, essa festa floresce nesse período religioso e oferece a flor do conhecimento ao produzir um cortejo pedagógico popular embalado pelo samba, com frutos perenes.