Artigo

A diversidade indecente

Pela abolição, brancos e negros tornaram-se iguais perante a lei, mas ricos e pobres continuam a ter direitos diferenciados, graças ao o desigual à educação plena e de qualidade

"Ser ou não ser racista, homofóbico, machista, depende do que é ensinado nas famílias e nas salas de aula" - (crédito: Maurenilson Freire)

CRISTOVAM BUARQUE, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)

Em excelente artigo publicado no Correio Braziliense, o ex-ministro Raul Jungmann apresenta sua visão sobre a importância moral e a necessidade social de combater preconceitos e promover a diversidade — respeito e aceitação do outro, pela cor da pele, orientação sexual, religião ou gênero. Apesar da qualidade e relevância, o artigo manteve a tradição de ignorar o "rendismo": a discriminação ao o a bens e serviços essenciais conforme a renda da pessoa (comida, educação, saúde). Tampouco menciona que, aplicado à educação, esse preconceito é a principal causa dos outros preconceitos.

O respeito à diversidade nasce do que for ensinado nas escolas: na formação da mente e na definição de comportamentos. Ser ou não ser racista, homofóbico, machista, depende do que é ensinado nas famílias e nas salas de aula. Cada vez menos nas famílias e mais nas escolas. Apesar da percepção, no Brasil, o o à escola de qualidade com permanência até o final da educação básica com qualidade depende de um preconceito disfarçado: a renda da criança. Jungmann lembra que a abolição foi um gesto de respeito à diversidade, ao determinar que legalmente ninguém era mais escravo no Brasil.

Mas o sistema escolar mantém até hoje "escolas senzala", para pobres, "descendentes sociais" dos escravos, e "escolas casa grande", frequentadas pelos "descendentes sociais" dos escravocratas, que podem pagar as altas mensalidades em instituições privadas ou que conseguem vaga em alguma das raras boas escolas públicas, quase todas federais. Pela abolição, brancos e negros tornaram-se iguais perante a lei, mas ricos e pobres continuam a ter direitos diferenciados, graças ao o desigual à educação plena e de qualidade.

Para ser plenamente alfabetizado hoje, é preciso saber ler, escrever e criticar em português, ser fluente em pelo menos um idioma estrangeiro; aprender a deslumbrar-se com as artes, ter competência e gosto para o debate sobre os temas de filosofia, política, antropologia e sociologia; indignar-se com a permanência da pobreza, desigualdade social, autoritarismo, corrupção e preconceitos contra as minorias. 

Saber usar as ferramentas digitais para usufruir e trabalhar com elas; formar-se em pelo menos um ofício que permita emprego e renda; adquirir noções e gosto pela prática de solidariedade com vizinhos, compatriotas e toda a humanidade: respeitar os patrimônios cultural e natural e sua diversidade; querer participar da construção de sociedades pacíficas, com desenvolvimento sustentável, democrático e justo; ser capaz de obter educação continuada ao longo da vida nestes tempos de limites, incertezas, revoluções tecnológicas e conceituais e transformações geopolíticas; garantir a todos que desejarem, a base para concorrer à vaga nas universidades e nos cursos mais disputados. Essa educação necessária não é oferecida à maior parte dos brasileiros, discriminados pelo rendismo.

Essa discriminação é executada pela falta de um Sistema Único Público de Educação Básica com máxima qualidade, permanência e equidade. Como consequência, o destino de cada brasileiro é definido desde o nascimento conforme a renda. Apesar de um negro rico poder frequentar a mesma escola que um rico branco, a pobreza tem cor preta porque a maior parte da população pobre é excluída da educação de qualidade devido ao rendismo. 

O preconceito racial persiste porque a negação de escola de qualidade discrimina a população afrodescendente que, por falta de renda, tem suas crianças fora da escola de qualidade. As análises sobre preconceito e diversidade se mantêm no paradigma tradicional: não denunciam o rendismo na promoção educacional, na compra de anos de vida e de saúde e até mesmo no direito à liberdade — em função do poder de compra dos serviços jurídicos.

Por milênios, houve discriminação racial, mas a palavra racismo só nasceu durante o nazismo alemão para definir a discriminação contra os judeus. Depois, se expandiu para os outros tipos de preconceito racial. Mas, até hoje, a palavra rendismo não é aceita para definir o preconceito de renda que determina a negação do o aos bens e serviços essenciais — comida, saúde, escolaridade. O mesmo padrão moral aplicado à desigualdade na qualidade da educação é aplicado à desigualdade no o a bens e serviços supérfluos e suntuários. Além de imoral, essa visão é também estúpida, porque não é percebida como a causa de todos os demais preconceitos: a diversidade indecente determinada pela renda, impede o respeito às diversidades decentes.

 


postado em 07/05/2025 06:00
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