ARTIGO

Tião: humanista, gênio, herói

Sebastião Salgado é o mais importante brasileiro dos tempos atuais, nosso maior merecedor de um Nobel, por sua obra pacifista, por sua criação que usa a beleza para despertar consciência sobre a necessidade da paz

opiniao 2405 -  (crédito: kleber sales)
opiniao 2405 - (crédito: kleber sales)

CRISTOVAM BUARQUE, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)

Conheci Sebastião Salgado em 1970, os dois estudando economia em Paris. Dois anos depois, fui convidado para festa de despedida em sua homenagem. Achei estranho, porque ele não havia concluído o doutorado e ainda era muito arriscado voltar ao Brasil. O regime militar o tinha como um subversivo comunista. Ele nos contou que decidira suspender o curso de economia e se mudar para Londres, onde trabalharia por um tempo até acumular uma poupança suficiente para voltar a Paris e se dedicar à fotografia. Área na qual ele acabara de se iniciar.

Era impossível imaginar que daquele gesto surgiria o maior fotógrafo da história — pelo tema, pela estética, pela técnica, pela versatilidade e pela tenacidade. A fotografia é uma arte do século 20, dizer que ele é o maior do século é o mesmo que dizer que é o maior da história. Sobretudo quando observamos as características e amplitude de sua obra.

Reencontrei muitas vezes Tião e Lélia: em Brasília, em Paris, em Vitória, em Aimorés. A cada encontro, era um Tião maior — que crescia com o tempo e com a obra. Em uma dessas vezes, ainda nos anos 1980, ele me disse que estava iniciando um projeto por uma década para fotografar o que não mais existiria no final do século seguinte, o 21. Parecia impossível. Mas, com sua arte, sua tenacidade e sua capacidade de mobilizar recursos — sempre ao lado de Lélia —, ele realizou Gênesis, o mais importante livro de fotografia já produzido e, provavelmente, o mais divulgado.

Estive também com ele em Aimorés, Minas Gerais, quando ele iniciava o programa de recuperação de quase 700 quilômetros quadrados de terra devastada pela pecuária. Disse: "Em 10 anos, vamos refazer aqui um pedaço da Mata Atlântica como era antes dos portugueses chegarem." Parecia impossível. Mas ele fez.

Noutra ocasião, estive com ele em Brasília quando se dirigia, mais uma vez, à Amazônia — para visitar, fotografar e imortalizar povos originários que ele amava e respeitava. Amava e respeitava toda a natureza e todos os seres vivos. Antes de fazer suas famosas fotos de gorilas, ou dias com eles, até que se acostumassem com sua presença.

Não posso esquecer o dia em que, em seu escritório-ateliê, falei da ideia de um livro com fotos de crianças e escolas ao redor do mundo. Tião sentou em frente a um computador, apertou alguns botões, e a impressora jorrou 140 fotos. Escolhemos 70. E fizemos o livro O berço da desigualdade.

Estive com Tião quando ele me deu uma lição importante, ao corrigir grave erro em um discurso meu que muitos elogiavam. Quando um jovem norte-americano me perguntou o que eu achava, como humanista, da ideia da internacionalização da Amazônia para salvá-la, respondi: "Quando o mundo internacionalizar todos os patrimônios da humanidade, eu defenderei a internacionalização da Amazônia. Mas, até lá, a Amazônia é nossa. Só nossa". Sebastião Salgado, disse: "A Amazônia só deve ser nossa se cuidarmos bem dela".

Estive indiretamente com Tião em muitas cidades assistindo a exposições de suas fotos. A última em Recife, sobre Serra Pelada — um monumento histórico que continuará sendo uma obra-prima mesmo daqui a séculos.

Obrigado ao mundo, que nos deu Tião brasileiro; à Lélia, que soube ser sua parceira em todos os trabalhos; ao Juliano que foi seu assistente; e a Rodrigo, que o inspirou.

Tião é o mais importante brasileiro dos tempos atuais, nosso maior merecedor de um Nobel, por sua obra pacifista, por sua criação que usa a beleza para despertar consciência sobre a necessidade da paz — entre os seres humanos, e destes com a natureza que nos sustenta. O Comitê do Nobel já não poderá outorgar-lhe esse título, mas nós podemos — e devemos — inscrever seu nome no Livro dos Heróis da Pátria. Até porque sua morte foi causada por doença contraída durante sua luta heróica em ambientes hostis que ele registrou para a sempre e para todos.

Por Opinião
postado em 24/05/2025 06:00
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