
Por José Adão Rezende* — Nos últimos anos, tornou-se comum ver policiais brasileiros equipados com pequenas câmeras presas aos uniformes. As chamadas bodycams chegaram com um discurso sedutor: ampliar a transparência nas abordagens policiais, garantir direitos e frear abusos. Mas será que, na prática, elas estão realmente transformando a relação entre sociedade e forças de segurança?
A morte de Genivaldo de Jesus Santos, em 2022, durante uma abordagem brutal da Polícia Rodoviária Federal em Sergipe, jogou luz sobre essa questão de forma dolorosa. O episódio gerou comoção e pressionou por respostas.
O Ministério Público Federal reagiu recomendando à PRF a adoção das câmeras corporais, fixando prazo para planejamento e implantação. A ideia era simples e necessária — evitar novas tragédias e reforçar o controle institucional.
Alguns estados já começaram a colher os frutos dessa iniciativa. Em São Paulo, dados de uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o UNICEF apontaram uma queda de 62% nas mortes provocadas por intervenções policiais após o uso das câmeras.
Santa Catarina também tem apresentado resultados positivos. Com base nesse cenário, o Ministério da Justiça e Segurança Pública editou a Portaria 648/2024, estabelecendo diretrizes nacionais sobre o uso das bodycams, definindo quando devem ser ligadas, como armazenar as imagens e quem poderá á-las.
Apesar dos avanços, o tema está longe de um consenso. E as resistências não vêm apenas de fora: surgem, com força, de dentro das próprias corporações. Muitos policiais veem as câmeras mais como instrumentos de vigilância do que como ferramentas de proteção.
Há quem relate autocensura, receio de interpretações equivocadas e até ansiedade por temer punições. É compreensível. Em situações de confronto, onde decisões precisam ser tomadas em segundos, o peso de estar sendo filmado pode gerar um bloqueio perigoso.
Uma pesquisa iniciada em 2021 pelo Instituto Superior de Ciências Policiais da PMDF, em parceria com o Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, trouxe números significativos: 64% dos policiais militares do DF se declararam contrários ao uso das câmeras. O estudo, apresentado pelo Major PM Márcio Júlio da Silva Mattos (doutor em sociologia e pesquisador da UnB), ouviu cerca de 1.500 policiais militares. O perfil mais resistente? Jovens em atuação direta nas ruas. Suas maiores preocupações: o uso das imagens como instrumento disciplinar, o medo de sanções e uma desconfiança geral sobre o destino e a finalidade dos registros. Ainda assim, quando as câmeras eram vistas como aliadas — uma espécie de escudo contra acusações infundadas —, o grau de aceitação aumentava sensivelmente.
Falo com a vivência de quem esteve na linha de frente. Como delegado da Polícia Civil do DF, enfrentei o desafio de decidir sob pressão, muitas vezes diante do risco real à vida. Nessas circunstâncias, o ideal de racionalidade absoluta dá lugar à urgência, à adrenalina. Inserir uma câmera nesse contexto pode, sim, ser mais um fator de tensão. O temor de ser julgado por uma imagem fora do seu contexto é legítimo e muitas vezes, paralisante.
É por isso que acredito ser necessário deslocar o debate da dicotomia "controle versus punição" para algo mais profundo. As bodycams não devem ser vistas como barreiras e sim como elos, com o potencial (e a obrigação) de restabelecer a fé mútua entre as autoridades e a população, em particular com os segmentos mais fragilizados, que sempre foram os mais afetados pelas abordagens mais rigorosas. Por outro lado, o policial também precisa de respaldo, de proteção institucional, de segurança jurídica para agir com firmeza e com justiça.
No fim das contas, o verdadeiro desafio é encontrar o ponto de equilíbrio entre tecnologia, responsabilidade e humanidade. Que as câmeras corporais deixem de ser vistas como olhos acusadores e em a ser reconhecidas como aliadas da verdade — de ambos os lados da lente.
Advogado criminalista, delegado da Polícia Civil do Distrito Federal (aposentado) e pesquisador em criminologia*
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